O Ministério Público tem sido o “grande algoz” dos advogados ao criminalizar de forma indiscriminada o exercício da advocacia. É o que diz Charles Dias, procurador nacional de defesa das prerrogativas do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Para o advogado, “o MP é o grande carrasco da advocacia”. Mas isso não diminui a participação da magistratura na violação das prerrogativas da classe, que estão definidas no Estatuto da Ordem. Para Dias, o Judiciário “se enclausurou” e perdeu contato com o mundo real. Por isso deixam de atender advogados, fazem greve por penduricalhos, pedem aumento para ir a Miami comprar terno, afirma.
“As negativas de acesso aos autos, buscas e apreensões midiáticas, a espetacularização do processo penal, o modelo adotado pela Justiça pública de fazer o Direito Penal parecer um programa de reality show, expondo a imagem de investigados, são campo fértil para que as violações ocorram”, afirma.
Leia a entrevista:
ConJur — Existe hoje um grande violador das prerrogativas dos advogados?
Charles Dias — O Ministério Público tem sido o grande algoz da advocacia ao criminalizar de forma indiscriminada o exercício da advocacia. Ao querer discutir, por exemplo, isso acontece na Justiça Federal, honorários contratuais avençados, os honorários que o advogado contrata com o cliente para o exercício em ações previdenciárias. Apesar de o STJ já ter dito de forma reiterada que a competência para discutir isso é da Justiça estadual cível. O MP é carrasco dos advogados quando quer impor licitação, mas esquece que o Supremo já disse que escritório de advocacia pode ser contratado por ente público sem licitação. Ou ainda quando impede que honorários sejam pagos a advogados que lutaram para que municípios recebessem dinheiro da educação de algum fundo federal por entender que a verba é exclusiva de determinada rubrica.
ConJur — As cortes superiores e o Supremo Tribunal Federal também desrespeitam as prerrogativas dos advogados?
Charles Dias — O STF editou a Súmula Vinculante 14, que considera direito do defensor ter acesso amplo aos elementos de prova, mas muitas vezes são decretados sigilos em processos no Superior Tribunal de Justiça e no próprio STF, dificultando o acesso do advogado ao material para que ele possa promover a defesa dos seus clientes. Outra forma de violação de prerrogativas é aviltamento de honorários sucumbenciais que não ocorre só nas instâncias ordinárias, também ocorre nos altos graus de jurisdição. Essa talvez seja a maior das violações porque diz respeito exatamente com a verba alimentar do advogado, com a sua subsistência, significa o aviltamento da profissão. Mas não é só isso. O juiz que avilta os honorários sucumbenciais, além de praticar uma injustiça, presta um desserviço à administração da Justiça. Pois esses honorários, além de representar uma justa recompensa ao advogado, é também um desestímulo as lides temerárias.
ConJur — Essa depreciação ocorre com mais freqüência quando em um dos lados está a Fazenda?
Charles Dias — O novo Código de Processo Civil estabeleceu normas bastante objetivas para fixação de honorários advocatícios nesses casos. Por isso não temos observado muito a prática que diminui a importância do advogado desde o início da vigência do diploma legal, em 2016. Quando ocorre, a impressão que se tem é de que o magistrado foi tomado pelo sentimento expressado pelo presidente da Associação de Juízes Federais, que disse que o juiz não tem tranquilidade para trabalhar imaginando que o advogado que está sentado ao lado dele está ganhando mais do que ele.
ConJur — Muito se fala sobre abusos cometidos no curso das grandes operações policiais.
Charles Dias — Somos tentados a pensar na advocacia criminal quando se fala em violação de prerrogativas porque a atuação do advogado no campo do Direito Penal é de embate. O choque ocorre com o delegado na fase de inquérito, tem enfrentamento com o juiz, com o Ministério Público na fase processual. As negativas de acesso aos autos, buscas e apreensões midiáticas, a espetacularização do processo penal, o modelo adotado pela Justiça pública de fazer o Direito Penal parecer um programa de reality show, expondo a imagem de investigados, são campo fértil para que as violações ocorram. Mas não podemos nos iludir: as violações ocorrem de forma muito forte e frequentes em outras áreas do Direito.
ConJur — São menos visíveis.
Charles Dias — O exercício da profissão está sendo criminalizado pelo MP por causa da emissão de pareceres em órgão públicos que não são vinculantes, são mero exercício de um ato de convicção, portanto, ausente dolo ou outro tipo de intenção de prejudicar a Fazenda Pública. Apesar disso, procuradores e promotores estão processando advogados por improbidade administrativa e até penalmente porque suspeitam de atos que gestores praticaram baseados no documento técnico. Isso viola claramente a prerrogativa do advogado, já que está em lei que é livre o exercício da advocacia em todo território nacional. Existem casos de advogados que são condenados por litigância de má-fé na área trabalhista só porque o cliente não compareceu a uma audiência. Não faz o menor sentido.
ConJur — Conhece mais casos desse tipo?
Charles Dias — O advogado ser processado por denunciação caluniosa ou comunicação de crime falso, mais ações de reparação de dano, quando é arquivada representação que apresentou à corregedoria contra autoridade pública que desbordou do seu dever de urbanidade ou provocou violações. Não é raro isso acontecer, apesar de o ato ser uma forma de a sociedade fiscalizar as autoridades. Por essa ótica, também seria cabível uma ação por denunciação caluniosa contra todo promotor que fizesse uma denuncia e ao final o réu fosse absolvido.
ConJur — Juiz que não atende advogado também descumpre o Estatuto da Advocacia?
Charles Dias — Por força de lei, ele tem que receber o advogado, independentemente de marcação de horário ou espaço na agenda. A advocacia tem compreendido e tolerado alguma sistemática de organização adotada pelos magistrados diante da grande demanda de processos que tramitam no Poder Judiciário. O que a advocacia não tolera, e isso não é incomum, é que juízes simplesmente não recebam advogados.
ConJur — Isso é comum?
Charles Dias — Alguns juízes dizem abertamente isso, colocam até avisos no gabinete dizendo que não vão conversar com o público durante determinado período. Recebemos muitas reclamações nesse sentido e estamos agindo para garantir o direito. Nas caravanas das prerrogativas que fizemos em 2017 visitamos estados que não tinham nenhum juiz de primeira entrância. Não tinha um juiz de primeira entrância em todo Judiciário, ou seja, as varas de primeira entrância todas estavam sem juiz.
ConJur — Onde foi isso?
Charles Dias — Em Alagoas. Evidentemente, o tribunal local fez um esforço e parece que amenizou a situação, mas ainda não solucionou. Onde se tem um zero absoluto de prestação jurisdicional, não há violação de prerrogativas, mas ao mesmo tempo se pode dizer que ocorre a maior das violações, que é impedir o exercício da advocacia, do trabalho. Em outros estados encontramos varas sem juízes há anos.
ConJur — Qual foi a explicação dos TJs?
Charles Dias — As justificativas são as mais diversas possíveis. A mais frequente é de que o Judiciário bateu com a cabeça no teto da Lei de Responsabilidade Fiscal, impedindo a promoção de concurso para preencher as vagas. Ao mesmo tempo, encontram como solução a extinção e fusão de varas. Ou seja, colocar nos ombros do cidadão, que são por demais estreitos e frágeis, todo o peso da incapacidade, da inoperância e da irresponsabilidade do Estado paquidérmico.
Paralelamente a isso, os penduricalhos remuneratórios permanecem. Juiz ameaçando fazer greve por causa de auxílio moradia, indo à Justiça para cobrar o benefício porque a esposa não recebeu, sendo que os dois moram na mesma casa própria. Enquanto isso, a população fica absolutamente desassistida. Não consigo observar isso como não sendo uma violação das prerrogativas da profissão, porque toca na falta de prestação jurisdicional.
ConJur — O que a Procuradoria da OAB tem feito para combater as frequentes buscas e apreensões em escritório de advocacia?
Charles Dias — A entidade está muito preocupada e atenta. O local de trabalho do advogado é inviolável. Não precisa de ações midiáticas: o escritório, se intimado, pode apresentar a informação que o juízo pede. Mas há uma preocupação hoje muito maior com os holofotes da mídia do que com o devido processo legal. A OAB só admite busca e apreensão em escritório de advogado quando o profissional estiver sendo investigado por crime. Os documentos no escritório do advogado foram dados em confiança, ele tem que zelar pelo sigilo dessas informações. Os responsáveis por essas buscas e apreensões não respeitam nada disso. Existem também muitas violações em escutas telefônicas.
ConJur — Que às vezes pega a comunicação do escritório indiretamente…
Charles Dias — A lei de escuta determina que o que não interessa ao processo deve ser destruído a pedido do Ministério Público, dono da ação penal. Mas não é isso que acontece. Muitas vezes, a informação é mantida para achacar o advogado, chantagear e intimidar a defesa. O Estatuto garante claramente a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho do advogado, bem como os seus instrumentos de trabalho, sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. E também se comunicar com seus clientes pessoal e reservadamente. Em nenhum presídio de segurança máxima desse país você se comunica com seu cliente de forma pessoal. Todas as conversas são filmadas e gravadas.
ConJur — Você recebe muitas reclamações de jovens advogados?
Charles Dias — O jovem advogado encontra um problema muito grande no início da sua carreira por conta de posturas autoritárias, inacessíveis e arrogantes por parte da magistratura.
ConJur — Conhece casos concretos?
Charles Dias — No Ceará, recentemente, uma jovem advogada despachava tutela de urgência no caso de uma criança que precisava ser internada. O juiz não despachou o processo e a criança morreu nesse meio tempo. Ela foi conversar com o magistrado, se emocionou e chorou. Foi chamada de desqualificada e imatura por causa da reação. Isso é prova de que o Judiciário se enclausurou numa realidade exclusiva, que o impede de ter e sentir o sentimento das ruas.
São esses elementos que levam, por exemplo, um desembargador a dizer que precisa dos penduricalhos para ir a Miami comprar ternos. São esses procedimentos que levam, por exemplo, um juiz a ir à Justiça cobrar um auxílio-moradia porque acha que isso é um direito pessoal e não uma verba de ressarcimento por um custo que ele tem com a moradia. É esse sentimento que permite que um desembargador vá para a imprensa e diga que esses penduricalhos são uma forma de disfarçar um aumento do seu salário que está defasado. Aí ele começa a desenvolver comportamentos próprios desse isolamento e do desconhecimento da realidade social que impedem que cumpra o papel principal e último da sua atividade profissional, ou seja, prestar jurisdição. Começa a criar, por exemplo, regras exigindo código de vestimenta para se entrar no fórum, ignorando que parte da população brasileira sofre para comer o pão de cada dia.
ConJur — O que o senhor acha de criminalistas quererem criar um grupo de defesa das prerrogativas por conta da “omissão” do Conselho Federal da OAB em casos envolvendo grandes operações como a “lava jato”?
Charles Dias — Essa é uma questão sensível. É preciso que o advogado tenha muito nítido o que é a violação de prerrogativa dele, no exercício da profissão, e o que é discussão processual ou de mérito na defesa do cliente dele. Muitas vezes o advogado quer que a OAB faça a defesa de mérito do cliente dele em situações que ele se vê impossibilitado de fazer. A OAB tem sido presente na defesa das prerrogativas sempre, eu repito, sempre, todas as vezes em que há violação de prerrogativas. A defesa de mérito no processo cabe ao advogado.
Entrevista extraída do Portal Conjur