Tribunais de Contas Estaduais criam escolas para ensinar prefeituras a prestar contas

Tribunais de Contas vão além da fiscalização dos gastos e irregularidades, desenvolvendo ações de orientação, pesquisa e colaboração com municípios para a melhoria da gestão educacional. 

Tribunais de Contas Estaduais (TCEs) criam escolas para ensinar as prefeituras a prestar contas de seus gastos, visitam as redes para verificar os resultados do investimento público – problemas e também boas práticas -, e o Tribunal de Contas da União (TCU) está coordenando uma auditoria do ensino médio em todo o Brasil para levantar desafios, causas e soluções possíveis. Mais que apenas fiscalizar as contas, as ações dos tribunais de contas em todo o país parecem apontar para uma tendência em expansão: criar mecanismos de compreensão sobre o que acontece na gestão pública e pensar conjuntamente em maneiras de trazer melhorias para o setor. 

Recentemente o TCU criou uma unidade interna dedicada apenas ao controle dessas ações de governo na educação. O TCU também tem estimulado os TCEs, que são autônomos, a fazerem o mesmo em sua jurisdição. Além disso, até o fim do ano ficará pronta uma auditoria inédita no Brasil coordenada pelo TCU, 25 TCEs e 4 Tribunais de Contas Municipais (TCMs) para diagnosticar os obstáculos à qualidade do ensino médio em todo o país. O acordo foi firmado em abril deste ano e seu objetivo é não apenas identificar os entraves, mas também estimular a melhoria das ações governamentais ao avaliar os processos e sugerir soluções.

Ao fim do processo, o TCU irá redigir um sumário único unindo todos os dados apurados pelos estados e os TCEs ficarão encarregados de monitorar a implantação das medidas propostas. “É importante destacar que não se trata de interferir na gestão da educação, mas antes de tudo colaborar e propor caminhos, ideias e sugestões para a melhoria da aplicação dos recursos”, explica Valmir Campelo, ministro do TCU.

Na Constituição Federal, as atribuições dos Tribunais de Contas são claras: fiscalizar a aplicação de recursos públicos, prestar informações sobre isso e aplicar sanções cabíveis aos gestores com contas irregulares. Por isso, apesar da ampliação da atuação desses organismos, existem alguns limites que os tribunais não podem cruzar, como a interferência direta em leis ou na gestão.

Mas eles podem recomendar mudanças e criar mecanismos de inibição de determinadas ações, como a reprovação das contas – que, por sua vez, podem impedir um político de se candidatar e o município de estabelecer parcerias e receber recursos da União. 

“O TCE não pode “agir” na educação, atividade inerente ao gestor, não devem se confundir as funções de gestão e fiscalização. As competências do TCE são, essencialmente, as de controle externo”, esclarece Victor Hofmeister, diretor de Fiscalização e Controle do TCE do Rio Grande do Sul.

Papel dos tribunais
Não podem agir, mas são uma peça-chave para que os gestores da educação entendam algumas mudanças estruturais que precisam ser feitas. “Essas auditorias operacionais têm contribuído para o MEC fazer mudanças no sistema de gestão a fim de resolver o problema da educação”, afirmou o secretário-executivo do Ministério, José Henrique Paim, em um evento do TCU

“Além de cumprir a parte legal, ou seja, fiscalizar se o dinheiro da educação está sendo bem gasto e não está sendo desviado ou desperdiçado, os TCEs precisam também combater a ineficiência desses recursos. Não adianta gastar o dinheiro se não gastar bem”, avalia Priscila Cruz, diretora executiva do movimento Todos Pela Educação.

Uma das bandeiras dos tribunais nesse sentido vem sendo a utilização do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) para verificar os resultados práticos do dinheiro aplicado na educação (leia mais na pág. 26). Em maio deste ano, o TCU recomendou que o indicador fosse ampliado para avaliar também a qualidade da infraestrutura das escolas e o corpo docente. O tribunal considera que o índice atualmente não é capaz de avaliar o sistema educacional como um todo, além de acreditar que deveria ser feito mais vezes para aumentar sua precisão e refletir melhor a realidade das escolas e redes.

São Paulo 
O conselheiro Sidney Beraldo atua no TCE de São Paulo e está em sintonia com a preocupação do TCU. Assim como outros na mesma função, possui autonomia para ampliar suas auditorias e – desde que passou a ocupar o cargo, no início de 2013 – incluiu o Ideb nos relatórios feitos aos prefeitos dos municípios sob sua responsabilidade, indicando se o índice local está acima ou abaixo da meta. “Está comprovado que não basta gastar apenas os 25% na educação. Tem de gastar bem, olhar a qualidade. Por isso, combinar a aplicação legal com o resultado do Ideb é muito importante, pois ajuda a medir essa efetividade.” A ideia de Beraldo é expandir essa prática para todos os 644 municípios atendidos pelo TCE-SP.

Ele conta que o tribunal de São Paulo tem sido rigoroso na avaliação das contas municipais e que os reprovados devem não apenas utilizar o dinheiro do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) corretamente no ano seguinte, mas investir tudo o que deixou de ser aplicado no ano anterior. Segundo o conselheiro, como gestores que não tomaram providências em relação a suas contas rejeitadas não podem se candidatar às eleições seguintes devido à chamada Lei da Ficha Limpa, isso tem preocupado prefeitos e inibido significativamente a falta de prestação de contas. 

Irregularidades
Os municípios paulistas não são os únicos preocupados com as contas rejeitadas. O TCE do Piauí reprovou, entre outubro de 2012 e março de 2013, 40% das contas do Fundeb referentes aos exercícios de 2008 a 2010: entre os 82 processos julgados, 33 foram avaliados como irregulares.

Um levantamento do Departamento de Patrimônio e Probidade da Advocacia Geral da União (AGU) revelou que a Educação e a Saúde são as áreas com mais corrupção no país -responsáveis por 60% a 70% dos desvios de recursos públicos. O foco, segundo o relatório, está nos repasses inferiores a R$ 100 mil, mais dificilmente detectáveis pela fiscalização. 

No caso do Piauí, a principal irregularidade encontrada nas contas dizia respeito à contratação de professores em caráter temporário e, portanto, sem processo seletivo. O mecanismo é utilizado por alguns municípios para manter professores continuamente como temporários e não precisar, assim, entrar no cálculo do percentual mínimo dedicado aos docentes previsto no Fundeb.

José Marcelino Rezende Pinto, professor da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), avalia que – considerando que de 80% a 85% dos gastos com educação no Brasil são com pessoal – a lógica aponta para esse como o foco dos desvios e irregularidades.

“Temos um gargalo de desvio com a existência de pessoas fantasmas na folha de pagamento, e também com o aposentado que entra como gasto, mas que teoricamente é da Previdência”, observa. Por isso, ele afirma que, apesar de os desvios de dinheiro serem detectados frequentemente na infraestrutura e transporte escolar, o montante é maior na área de pessoal. “Em São Paulo, por exemplo, os aposentados são quase 30% da folha de pagamento, mas isso não é uma irregularidade explícita porque a legislação é omissa em relação a esse ponto.”

O TCE de Santa Catarina, por exemplo, detectou que os recursos do Fundeb estavam sendo usados para pagar a aposentadoria dos inativos. E observou, ainda, que dos R$ 11,15 bilhões arrecadados em 2011, R$ 2,79 bilhões deveriam ter sido direcionados à educação. No entanto, foram aplicados no período apenas R$ 2,49 bilhões, ou seja, 22,35% da receita ou R$ 295,80 milhões a menos que o determinado pela Lei. Significa que nos cinco anos anteriores à avaliação, a educação deixou de receber R$ 1,26 bilhão.

Desconhecimento
Segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), as irregularidades nas prefeituras crescem especialmente com o início de novas gestões, como é o caso da virada de 2012 para 2013, o que aponta para as dificuldades na prestação das contas. Em abril, a entidade registrou que 5.363 municípios, ou 96,4% das prefeituras brasileiras, estavam impedidas de firmar convênios com a União por causa das contas rejeitadas. 

A situação estava especialmente crítica em sete estados, onde todos os municípios tinham restrições para celebrar convênios com a União: Alagoas, Amapá, Amazonas, Maranhão, Piauí, Roraima e Sergipe. Nos demais estados os números também eram alarmantes.

O panorama denota a importância dos trabalhos dos TCEs de educar e auxiliar os municípios a prestarem contas e conseguirem melhores resultados na educação.

Isso porque, conforme explica Campelo, do TCU, “a maior parte dos gestores condenados pelo tribunal a devolver recursos públicos federais não está envolvida em desvios, mas, sim, desconhece a legislação”. Ou seja: faltam aos funcionários recursos técnicos e administrativos para prestar as contas da maneira correta.

“Dependendo da realidade de cada município, há muitas dificuldades. Os mais pobres têm mais dificuldade de se organizar em termos de infraestrutura. Alguns possuem apenas um computador e não há nem mesmo um técnico. Há ainda os pequenos que têm a Secretaria de Educação junto com Lazer, Cultura e Esportes, e misturam o orçamento”, comenta Ana Carla Muniz, secretária de Educação de Rondonópolis.

No entanto, Victor Hofmeister, do TCE-RS, pondera que não se pode atribuir apenas ao desconhecimento ou a dificuldades com o processo de prestação de contas o quanto do investimento não é feito corretamente. “A fraude e o dolo não relacionados ao desconhecimento ocorrem com alguma frequência”, afirma.

Atuação in loco
A principal forma de atuação escolhida pelo TCE do Mato Grosso do Sul para reduzir as irregularidades foi enviar seus técnicos para visitar os municípios e explorar a rede de ensino: pegam ônibus escolar, comem a merenda com as crianças, assistem às aulas, conversam com professores e diretores. Isso vai além da obrigação dos TCEs, que teoricamente se limita à conferência dos gastos junto à prefeitura. Mas foi assim que o tribunal tomou conhecimento, por exemplo, de um município rural cujas escolas nunca haviam recebido um livro. 

O prefeito de Ribas do Rio Pardo respondeu à cobrança do TCE explicando que no ano seguinte, 2013, daria o destino correto aos livros. “Mas ele estava no seu oitavo e último ano de mandato”, conta a conselheira Marisa Serrano. Segundo ela, essas visitas permitem que as inspeções do tribunal sejam reais e não meramente formais. 

Já no município de Bela Vista, próximo à fronteira com o Paraguai, os técnicos detectaram, também em 2012, que uma empresa terceirizada de transporte possuía mais de uma licitação e que para cumprir todos os serviços buscava as crianças às 4 da manhã e deixava-as na escola às 5h30. Elas aguardavam no escuro, na rua e com as portas da escola fechadas até que os outros chegassem, mais de uma hora depois. E só comiam às 9h30, 10 horas, quando a merenda era servida.

O TCE-MS criou também um núcleo estratégico de Educação para melhorar a qualidade da rede. Um dos maiores desafios, segundo Marisa, são os professores temporários.

colaboração
O vizinho Mato Grosso também vem se destacando pelo trabalho do Tribunal de Contas do Estado. O órgão encomendou ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM) uma metodologia de dados geor­referenciados, que cruza as contas de cada um dos 141 municípios com os impactos de suas políticas na qualidade da educação e da saúde. Na educação, os dados são fornecidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e pelo Censo Escolar. Com isso, o TCE-MT consegue inclusive avaliar a evolução dos municípios e compará-los à média brasileira, informação que é depois transmitida às prefeituras para que os gestores busquem mudanças em direção à melhoria do atendimento.

No Amazonas, o TCE passou a avaliar não apenas se as ações governamentais cumprem as regras da prestação de contas, mas se alcançam as metas de melhoria da qualidade da educação estabelecidas junto ao tribunal. Em conjunto com cada gestor, o TCE-AM faz recomendações e determinações para corrigir os problemas diagnosticados na auditoria, e o gestor tem 60 dias a partir disso para criar um Plano de Ação para sanar as questões levantadas. O plano é acompanhado pela equipe do TCE, que posteriormente realiza o monitoramento dos resultados. “Essa modalidade de auditoria é realizada em conjunto com o gestor e, em um primeiro momento, não tem um caráter punitivo, mas corretivo, lembrando que o objetivo maior é o aperfeiçoamento da gestão pública”, explica Juliana Meireles, analista de Controle Externo do Departamento de Auditoria Operacional (Deaop).

Escolas de prestação de contas 
“Há dois tipos de gestores: o corrupto que desvia deliberadamente os recursos e o que não é corrupto, mas não é capacitado. Não age de má-fé, mas não tem competência técnica para o cargo”, observa Marisa Serrano, conselheira do TCE-MS. A afirmação é praticamente unânime entre especialistas, e por isso a maior parte dos tribunais (a exemplo do TCE-MS, com a EscoEx) criou escolas de contas para capacitar, formar e estimular os gestores com boas práticas.

A Escola de Contas Públicas do TCE-SP, por exemplo, intensifica os cursos aos gestores nos inícios de mandato. Além disso, distribui uma cartilha educativa a todas as prefeituras, ensinando o que pode e não pode ser feito na prestação de contas. Para aumentar o alcance no estado, a Escola de Contas já ofereceu e pretende aumentar a oferta de cursos a distância, para que os gestores não precisem se deslocar. “Em geral sabe-se da obrigação de aplicar os 25% em educação. O que se requer mais nos cursos é a compreensão da fase de licitações e contratos, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e de fases de planejamento, como o Plano Plurianual”, afirma Silvana de Rose, coordenadora da escola. 

O que a auditoria nacional do ensino médio irá avaliar: 
– Índices de qualidade
– Taxas de acesso
– Conclusão e evasão dos estudantes
– Adequação do currículo e das diretrizes e práticas pedagógicas aos objetivos declarados 
– Infraestrutura das
escolas
– Programas previstos no Plano Plurianual (PPA) e respectiva implantação
– Qualificação dos funcionários e professores
– Condições de trabalho oferecidas
– Gestão escolar
– Perfil de estudantes de acordo com o desempenho e a permanência nessa etapa do ensino
– Recursos orçamentários previstos para melhoria do ensino médio
– Identificação de escolas bem-sucedidas e boas práticas 

Fonte: CM Consultoria

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