por J. U. Jacoby Fernandes e Jaques F. Reolon
A licitação é o procedimento por meio do qual a Administração escolhe a proposta mais vantajosa para o futuro contrato de seu interesse, tendo em consideração o regramento legal e editalício que estabelecer. É também um princípio que embasa a área do Direito Administrativo e submete a ação administrativa tendente à contratação.
É da essência da própria licitação a efetivação do princípio constitucional da isonomia, tanto que o legislador o colocou em primazia absoluta no art. 3º da Lei nº 8.666/1993 e, assim, tem por corolário o dever dirigido aos agentes públicos, no sentido de coibir a prática de qualquer ato que admita, preveja, inclua ou tolere, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo.
A tutela jurídica dos princípios da licitação foi evidenciada especialmente pelo art. 90 da Lei nº 8.666/1993, que tipificou como crime:
Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente de adjudicação do objeto da licitação:
Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.1
Pode ocorrer, porém, que a unidade licitante tenha procedido com todo o rigor, visando efetivamente ampliar a competição, mas os interessados tenham realizado ações que com o objetivo de obter vantagens no processo. A apresentação de documentação irregular é um desses atos que podem ser utilizados por aqueles licitantes de má-fé.
Recentemente, o Tribunal de Contas da União – TCU enfrentou o tema em relação à busca pelas vantagens legais oferecidas às microempresas e empresas de pequeno porte durante o procedimento licitatório. Isso porque assim estabelece a Lei Complementar nº 123/2006:
Art. 47. Nas contratações públicas da administração direta e indireta, autárquica e fundacional, federal, estadual e municipal, deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica.2
As vantagens competitivas dadas às microempresas e empresas de pequeno porte servem justamente para permitir que os comerciantes com menor poderio econômico possam ingressar no processo competitivo, oferecendo produtos à Administração Pública e, consequentemente, desenvolvendo a economia local. É preciso coibir, assim, ações que tentem desvirtuar essa intenção do legislador, como fixou o TCU:
A mera participação de licitante como microempresa ou empresa de pequeno porte, amparada por declaração com conteúdo falso, configura fraude à licitação, tipificada no art. 90 da Lei 8.666/1993, ensejando, por consequência, aplicação da penalidade do art. 46 da Lei 8.443/1992. A ausência de obtenção de vantagem pela empresa, no entanto, pode ser considerada como atenuante no juízo da dosimetria da pena a ser aplicada, em função das circunstâncias do caso concreto.3
Na decisão, o TCU estabeleceu a possibilidade de atenuar a punição, mas não afastou da subsunção ao tipo criminal a conduta praticada com o objetivo de fraudar, mesmo que não haja vantagem, afastando-se a necessidade do resultado da conduta para a configuração do ato ilícito previsto na Lei nº 8.666/1993. O tema, porém, não é pacífico, considerando que doutrina e jurisprudência entendem que o crime tipificado no art. 90 da Lei nº 8.666/1993 é um crime de resultado, necessitando de dolo específico.
Em decisão proferida pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal – STF, o ministro Dias Toffoli utilizou a necessidade da imputação de dolo específico para a configuração do crime. No caso concreto, por esta não estar presente na petição inicial, Toffoli resolveu declarar a inépcia da denúncia apresentada pelo Ministério Público.
À míngua de uma imputação que necessariamente deveria compreender a descrição do dolo específico do agente, a meu sentir, deve ser reconhecida a inépcia da denúncia em relação ao crime descrito no art. 90 da Lei nº 8.666/93. Não se trata de avaliar se está aqui ou não o dolo específico. Trata-se de um defeito formal da denúncia, que não faz a imputação formal do dolo específico.4
Com a manifestação do TCU, o tema deve voltar à discussão pela doutrina e pela jurisprudência das cortes de contas.
1 BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 jun. 1993.
2 BRASIL. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e dá outras providências. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 fev. 2006.
3 TCU. Processo nº 028.597/2017-6. Acórdão nº 1.677/2018 – Plenário. Relator: ministro Augusto Nardes
4 Denúncia que não imputa dolo específico por fraude em licitação é inepta. Portam Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI268691,71043-Denuncia+que+nao+imputa+dolo+especifico+por+fraude+em+licitacao+e>. Acesso em: 17 ago. 2018.